Dizem as boas almas que no início dos mundos ou sei lá de que forma de vida era o verbo. Conjugado, imagino, assim: eu estou aqui, tu estás aqui, ele está aqui. Digo eu, apenas alma dentro de um corpo, que apesar do futuro ter feito do presente um passado, o verbo, quando escapa da boca, continua a conjugar-se com o eu estou aqui, tu estás aqui, ele está aqui, ao menos na minha história. E essa minha história é uma narrativa bastante simples sobre como o ele está aqui conseguiu continuar a ser um ele está aqui depois de sete anos anos ausente, dado como desaparecido, esquecido, morto. Talvez, seja necessário explicar como esse ele está aqui nasceu para ter conseguido em um tique-taque de relógio nos colocar no mesmo ponto zero, sob o mesmo céu, dentro das mesmas paredes nesse exato momento em que escrevo. Então, passemos ao nascimento.
O nascimento do ele está aqui não envolve nenhuma fêmea, nem sangue e nenhum tipo de parto. Está mais ligado a um tipo de pato sem penas e sem asas também conhecido como bípede humano. No caso, a um exemplar masculino, de tamanho padrão, silencioso e com ficha suficiente para pagar um seguro fiança de uma imobiliária também padrão, alugar e se mudar para um apartamento em um prédio discreto, pequeno e habitado por uma única família: o meu e a minha. Em síntese, um pato suficientemente quá-quá para trazer com ele um outro tipo de ave.
Eis o prédio: quarentão recauchutado, quatro apartamentos, garagem com vagas limitadas para o uso de dois, desbotado por livre e espontânea vontade de algumas latas de tinta, uma escadaria dada a vertigens e a um corpo que cai, é bem verdade um pouco imperfeita para um assassinato, porém ideal para uns dois meses de gesso e de imobilização, flores nas janelas, câmeras de vigilância desligadas pelo excesso de auto-estima, tradição e espírito pacífico dos moradores, ou seja, o meu e o do meu pessoal, ou mais ou menos isso.
O meu pessoal. Conte até três e você o terá na palma da sua mão. Somos ele, ele e eu, sendo o ele do meio uma criança. O ele mais velho, o mais bem humorado. O do meio, o segundo mais bem humorado, e o eu eu, bem, o eu em questão, siga me lendo e você poderá definir com as suas próprias palavras. De qualquer forma, não se preocupe. Ajudarei. E vai ser fácil porque sou a mãe do ele do meio e por essa condição declaro-me, por livre e espontânea vontade, que sou a antidesnaturada na máxima potência, o que, traduzindo, significa que posso ser uma pedra, um rochedo, uma cordilheira no caminho de alguém se o caminho desse alguém atropelar o da minha cria. Aí, para me derrubar, só usando dinamite. E, ainda assim dinamitada, acho que eu encontraria um jeito de retornar, nem que fosse em forma de asteróide em rota de colisão.
Mas voltemos ao pato e ao nascimento do ele que está aqui outra vez depois de sete anos. Pois bem, sei que esse ele está aqui não entrou dentro de uma mala sem rodinhas ou alça devido ao seu visível excesso de peso. Talvez, tenha entrado em uma caixa de madeira, infelizmente, não despachada para Timbuktu. Não sei. Sei que o ele está aqui entrou e ganhou uma chave e que a primeira vez que o vi, vi um desenho surreal personificado em uma face humana. Dentro da cabeça de ovo brigavam um par de óculos sem olhos com um sorriso mole cheio de dentes muito grandes como os de um lobo e entre eles cicatrizes e tatuagens, espécies de gárgulas presas a pele. Isso foi o que eu vi em uma visão impressionista ou intuitiva, porque cicatrizes existiam. As tatuagens de gárgulas ficam por conta da minha interpretação. Eu gosto de interpretar e adoro a estética impressionitas. Acredito que o cérebro compreende coisas sobre as coisas antes de formatá-las por inteira. Eu costumo ser criticada por ter esse jeito. "Não seja dura com as pessoas. Você está vendo coisas onde não há. Ih, cuidado com a paranóia" são alguns exemplos de frases ouvidas pelas minhas orelhas cuidadosas. Aliás, orelhas, nariz e olhos cuidadosos, que, ao contrário das famosas figuras do macaco que nada escuta, vê ou sente, eu sou uma xereta perspicaz. Minha curiosidade, em um certo ponto de vista, é a minha grande adversária. A personagem do James Stewart, no Janela Indiscreta, é uma das minhas favoritas. E já que o assunto janelas entra em pauta, aproveito a deixa para falar do pato que alugou o apartamento e que trouxe com ele essa gaiola que é o ele que está aqui.
O pato que alugou o apartamento e trouxe o ele que está aqui era, ou queria ser, um artista. Todos os anoiteceres, acendia a luz do quarto que dá de frente para o meu escritório e, de cortinas escancaradas, jogava cores sobre telas enormes. Daqui de cima, eu não podia ver detalhes, mas via os movimentos e os tons. Então, na primeira oportunidade que tive, perguntei a ele se uma hora dessas eu poderia ver um quadro de perto. Claro que poderia. Fui lá ver sem perceber que entrar em casa alheia significaria abrir a porta da minha.
Gostei de estar neste blogue e de ler este
ResponderExcluirtexto.Voltarei,sempre que possa.
Bj./Irene
Quando ficção e realidade se confundem é melhor
ResponderExcluirmesmo ser "paranóica", como diziam meus avós:
"o seguro morreu de velho, mas o desconfiado
vive até hoje!" Um futuro que foi passado se transformando em presente é muito mais do que
a nossa vã filosofia. Que estória insólita e
preocupante, Lelena, fico imaginando como será
o seu desfecho...<:))
beijosss
E agora, além de ficar também curiosa com o desfecho (teremos parte II, parte III?)...gostei muito desse final provisório...
ResponderExcluirBeijos,
Muito interessante...fico em "espera".
ResponderExcluirNada a declarar por enquanto, sou um expectante curioso. Mas sei que a agulha e linha estão seguras em sua mão. É esperar...
ResponderExcluirbeijoss
vejo que é dada a recomeços...abençoada paciência!
ResponderExcluirPS: também sou meio paranóica, mas chamo isso de auto-preservação ;)
O que é ficção? O que é a realidade!
ResponderExcluirGostei da descrição linda e carinhosa da tua família e da tua casa... enfim, do teu mundo!
abrir puertas...y, por qué no, ventanas
ResponderExcluiryo estoy aquí, esperando
adoré!*
Gosto da prosa, mas o caso parece ser demasiado sério para estar a avaliar a qualidade da escrita. Creio que todos desejamos um final feliz.
ResponderExcluirForça!
"narrativa bastante simples"
ResponderExcluirfoi o melhor texto que li nestas 348h
Estou aqui rindo e me perguntando para onde essa moça quer nos conduzir? Ou o que ela esconde ou tão bem revela?
ResponderExcluirVoltaremos com certeza!
bjs
Lelena, queria poder comentar este texto, mas a sensação que ele me traz não me permite...sei lá, acho que as coisas andam passando muito por dentro de mim...
ResponderExcluirespero que o desfecho seja bom
beijos
Andrea, o desfecho será bom! Acredite :) beijoss
ResponderExcluirPatrícia, a moça sofre mas ri também :) Que entre a comédia e o drama não existe quase mesmo nenhum espaço :)
ResponderExcluirbeijoss
ediney, 348 horas de bipedices rsrsrs
ResponderExcluirbeijoss
AC, caso sério, sim. Mas solucionável :) Em breve, trago, o desfecho para cá.
ResponderExcluirbeijoss
Rayuela, por essas janelas entram ventos e também brisas. Já estou com a continuação em andamento e logo a trarei para cá.
ResponderExcluirbeijoss
mfc, sabe que essas perguntas me perseguem porque tem coisas que acontecem por aqui e me levam a escrever que eu mal acredito que existam!
ResponderExcluirbeijoss
Maray, adorei o autopreservação! Eu também sou seguidora do autopreservacionismo radical :)
ResponderExcluirbeijoss
José Carlos, a costura está se realizando e logo trarei mais um retalhinho do ele que está aqui :)
ResponderExcluirbeijoss
Blue Shell, o resto do resto vem vindo!
ResponderExcluirbeijoss
Tania, teremos teremos teremos rs
ResponderExcluirO ele que está aqui terá de estar em algum outro lugar :)
beijoss
Ci, tá tudo bem. O pesadelo renderá só em palavras. Pode apostar. Eu logo trago mais um pouquinho.
ResponderExcluirbeijoss
Silenciosamente ouvindo, seja bem-vindo. Volte fazendo bastante barulho :)
ResponderExcluirbeijoss
Ninguém perde o pato por esperar!
ResponderExcluirCris, e o pato que se cuide!! :)
ResponderExcluirbeijoss
O aperitivo abriu-me o apetite. Vou esperar pela refeição completa.
ResponderExcluirbjs
Tinha esquecido como sou curiosa...
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