
De novo na estrada antiga. As curvas da infância, antes razão de náusea, agora exibem-se esplendorosas; cortam a floresta de araucárias sem machucá-la. Estão em sintonia com o universo que se vê da janela. A noite é de astros. A lua pela metade reluz feito a cheia. Escuto o i-pod. Músicas de minha adolescência e de agora aliviam o meu mal-estar. A cidade é um ponto no mapa. Meu pai tem um mapa no rosto escrito em um idioma que não sei decifrar.
Esta casa enorme, com lustres de cristal, móveis e detalhes em gesso rebuscados por todos os cantos, parece um grande freezer. Não tem mais personalidade. Esta aniquilada. A presença de pedra por tantos anos desumanizou-a por inteiro. Em pedaços, existem resquícios de beleza; no todo, está horrível.
Ele sempre morreu de medo da morte. Assim como havia a certeza de que a Medusa um dia iria abandoná-lo, havia a que ele iria dar vexame. Ele faz da morte um fiasco. A família é um fiasco. A mãe morreu aos cinquenta, poupando-se da encenação e loucura patéticas. Ele não tem a mínima humildade. Não se curva nem diante da natureza. Sua arrogância escapa em meio a loucura, e fica claro o quanto ele é um veneno.
Eu poderia ser um veneno. De alguma forma, consegui isolar o núcleo de minha própria substância e minimizar os efeitos tóxicos e letais, transformando-me em vacina e antídoto de mim mesma.
Quando eu envelhecer prefiro ser levada a um veterinário para uma eutanásia que me transformar em uma alucinada agressiva e injusta com o meu filho. A verdade é que o pai sempre foi um homem honesto e caridoso com os estranhos, mas justo e generoso, jamais. Conosco, seria pedir demais. É diferente ser generoso. Generosidade está além do pequeno sentimento cristão; envolve dar algo que não se tem de sobra. Implica renúncia, despreendimento como naquela frase que diz: amar é dar algo que não se tem.
- Quero que me devolvam o lugar ao sol que roubaram - ele diz,furioso. Não aceita a velhice, nem a doença. Morte, então, considera uma ofensa, mesmo tendo quase oitenta anos. A impressão é de que guarda uma auto-imagem jovial e vigorosa. Quanto a mim, como filha, sinto-me ainda mais dentro do livro Os irmãos Karamázov. Ele se parece mais e mais com o velho Fiódor. Sua paternidade ambivalente está potencializada. O estado clínico, o Alzheimer e o lado psicótico unidos o tranformam em uma fera. A fera não está na selva. Aflorou em casa, no quase lar, onde sempre ressonaram rugidos.
Acusa-me, com os olhos sem água e aos berros, de ser parricida.
- Vocês são todos uns parricidas! Filhos parricidas! Querem que eu morra. Querem me matar!Vocês serão todos pegos!
Eu, então, dou as costas. Que fique com a enfermeira espírita como ele, que se vangloria de saber exatamente o que fazer porque é uma profissional e por ser capaz de tirar tudo de letra.
Sinto revolta.
Mesmo que quisesse matá-lo, eu não seria uma parricida. Para matar um pai, antes é preciso ter um.
O pai construído em nome próprio, da família, da sociedade insiste no fiasco. Ele foi um fiasco, um vexame desde o início. Faltaram os detalhes e os traços da paternidade. Nunca saiu do esboço, nunca ganhou cores. A essência paterna não apareceu. A célula ficou sem núcleo, o afeto sem homem e o homem sem filhos.
Ele é que é um parricida, que matou o pai que deveria ser já no momento do parto de cada filho.