Morte. Ninguém quer se apossar dessa palavra
em causa própria. Tampouco, como no Sétimo selo, ser visto por ela. Faz-se de tudo para eliminá-la. Que a
distância seja sempre mantida! Que sua chegada seja um acidente no vocabulário! Não há acidente. Há a sensação de que se é. Aonde quer que se vá, ela ronda e acontece
porque é legítima, está no acordo. Não se trata de uma decisão, de uma escolha,
ainda que alguns cometam suicídio. Suicídio, em raríssimas exceções, pode ser
considerado um ato lúcido. Sándor Márai se deu um tiro aos oitenta e poucos anos. Sándor Márai comprou uma arma, fez curso de como atirar e ficou à espreita
de seu último instante de autonomia, do limite em que estar vivo não é mais a
mesma coisa que existir. E, pah, puxou o gatilho! Sepultou a si mesmo. Não
houve negociação com deus. Houve uma
educação para o fim. É bem possível que sua professora se chamasse Literatura.
A literatura nos ensina a morrer. Os fatos, nos
livros, acontecem além de nossos desejos, principalmente, dos desejos dos
leitores. A literatura tem função
educativa. Diz o Umberto Eco, no Sobre a literatura, que “função educativa não
deve ser compreendida apenas como a transmissão de ideias morais ou como a
transformação do sentido do belo”. Os
escritores são humanos maus, o que não quer dizer que não sejam também pessoas
boas. Mas são donos de destinos, portanto, dão cabo de personagens, respeitando
mais a intenção de seus textos que ao curioso que depois vem dar vida ao que
escreveram. Calafrios, tensão, lágrimas sobre uma folha de papel, oh, que
maldade, é uma alegria. Missão cumprida. Os escritores, assim como o Márai, manejam
armas e as detonam depois de ganhar confiança, a sua. São uma espécie de mãe,
sejam eles homens ou mulheres, desprovida de afeto e do sentido de servidão imposto
pela sociedade patriarcal. Idealizam, fecundam, geram e dão a luz às centenas
de milhares, de milhões de seres para depois abandoná-los à própria sorte,
torcendo, é verdade, para que alguns personagens sobrevivam em um leitor eternamente
como eternamente resistem em nós as memórias maternas. Um livro é um útero. A
linguagem é um cordão umbilical.
Simone de Beauvoir, no Segundo Sexo,
esclarece: “desde o dia em que nasce, o homem começa a morrer: é a verdade que a
mãe encarna.” Simone escreveu o Uma morte muito suave para exorcizar a finitude da mãe dela. A senhora Beauvoir já
tinha “idade”. Enquanto se ia, os
leitores da filha, benevolentes e inconvenientes, escreviam cartas,
alertando-a: “Se não tivesse perdido a fé, a morte não a aterrorizaria tanto”, “Desaparecer
não é nada: sua obra ficará”. A todos, Simone dava idêntica resposta. A
religião não podia fazer mais por sua mãe que por ela, não podia oferecer nada
além da esperança de um “sucesso póstumo”. Ninguém podia fazer nada por elas, exceto as
palavras, exceto a professora dona literatura com sua capacidade admirável de
tornar a quem quer que seja uma criatura um pouco menos mortal.
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