Sexta-feira santa como gostam os bons cristãos, estou na praia, dando uma volta na quadra com o Bono quando escuto uma voz masculina dizer: tira logo essa criança antes que eu a jogue pela janela. A criatura em questão não está em nenhum edifício. Sentado no banco de motorista fala assim tão amigavelmente com uma moça sentada no banco de trás ao lado de uma cadeirinha infantil. O ser infantil é mesmo um ser infantil. No máximo dos máximos, tem dois anos. Segura uma fraldinha de pano com os dedos ainda gordinhos. Estão ali estacionados, família feliz sem margarina, em frente ao prédio verde e grande e caro de veraneio perto do meu, pequeno, bege e acessível. Eu, como boa pastora de crianças indefesas, puxo a guia do meu schnauzer miniatura como se ele fosse um pitbull e o coloco em posição de alerta. E em alerta também fico. Mais que alerta. Paro bem ao lado do carro e fixo os meus pares de olhos e ouvidos sobre o trio. O machão me encara. Perda de tempo. Nem quando pequena tive medo de cara feia. A moça olha-me devagar, parece constrangida não sei se pela submissão ou se pela cumplicidade com o suposto pai. O bebê segue com um chorinho baixo. Como não movo um músculo, outra vez, os olhos rasgados e verdes do exemplar de agressividade voltam a me fulminar. Pouco me importo. Vou até a frente do carro e leio a placa em voz alta. Repito para memorizar, completamente, indiferente à cara de bosta do ameaçador de criançinhas. Os dois, macho e fêmea, percebendo que eu dali eu não saio, dali ninguém me tira, descem pé por pé fazendo cara de que não é com eles. Continuo imóvel. Fico observando e só volto a caminhar depois que entram no prédio, ainda assim olhando para o alto, para as sacadas. São doze andares. Se um dia alguma criança cair dali, eu sei e eles sabem muito bem: eu ouvi.
Sábado pós sexta-feira santa, abro o jornal Zero Hora e vejo no caderno de Cultura um texto intitulado Complexo de Nardoni. Tentam dois psicanalistas explicar o inexplicado. Dizem eles que nem sempre o homem da mãe é o pai de seus filhos mesmo sendo eles quem os reproduzam. O texto integral está Aqui .
brutal =(
ResponderExcluirPobre filho. Vai precisar de muita terapia.
ResponderExcluirTalvez você tenha assistido a um trauma que ficará para sempre na cabeça dessa criança.
ResponderExcluirÉ de pessoas como você que o nosso mundo precisa. A indiferença soa como aquela frase do quem cala consente. Se não nos calarmos, se não formos indiferentes, podemos fazer coisas boas acontecerem e impedir que coisas más aconteçam, eu acredito nisso. Se cada vez mais pessoas mostrarem que estão atentas e dispostas a agir, talvez se consiga acordar a vergonha e a ética escondidas ou adormecidas nos seres humanos embrutecidos pela dura realidade que bate à porta todos os dias.
ResponderExcluirQue horror!!Sabes, Bípede, se há coisa que me transfigura é esse tipo de "gente", fico doente de raiva e nojo...
ResponderExcluirEste texto é muito forte, me impressionou. Muito bom.
ResponderExcluir"nem sempre o homem da mãe é o pai de seus filhos mesmo sendo eles quem os reproduzam.". Profundo. Muito profundo.
ResponderExcluirMedusa não nos jogou pela janela porque teve o azar de nos encontrar já crescidos. Eu sei na pele o que é ter um pai que se desliga quando não há mais a mãe. Sempre que esse assunto aparece, seja de uma forma amena ou de uma violentíssima como foi o caso Nardoni, imediatamente, meu detector de maus pais faz bip bip.
ResponderExcluirGostei do Zero Hora. Valeu.
ResponderExcluirTarde, o Zero Hora é um jornal bem fraquinho, mas o Caderno de Cultura que sai aos sábados costuma ser bem interessante.
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