
Possessão Parabólica
Então ela olha para as unhas pintadas de vermelho, pede o óleo secante e assopra dedo por dedo porque não dá para sair do jeito que está, nem vestir o casaco ou pegar o dinheiro. Fala à manicure que abra sua bolsa e encontre a carteira de couro. No compartimento de moedas, deve haver o suficiente. Se não houver, é tarde. Os cartões ficaram na gaveta. Na próxima semana, acerta o que deve. Volta e meia, outras freguesas utilizam a desculpa. É chegada a sua vez. Caloteira nunca foi. É verdade. Hosana, nas alturas!
A loira vem descendo as escadas, Rapunzel tingida de água oxigenada e vestida de fada madrinha em liquidação. Os seus cabelos são secos e sua pele sem cor. Ela surge do nada, flutuando o corpo carnudo de um metro e setenta feito um fantasma. Mas ela não arrasta correntes, nem fala em idioma desconhecido. O seu português é audível e calmo. Ouvem-se as palavras por favor, alguém marque um horário para mim, com todas as sílabas. Diante do pedido, espalha-se o silêncio. A manicure intervém e diz:
— Está bem, sexta-feira, às dez horas. O seu nome é?
— O nome dela é Aparecida — responde Hosana.
— Aparecida? Você a conhece?
— Não, nunca a vi.
Então ela olha para a janela e vê a descida íngreme. Pessoas sobem a rua com seus cachorros e roupas de caminhada. Carros descem em alta velocidade. O divã é confortável, mais que a cama freudiana de proteção. O analista, o ser quase invisível, a conta alta no final do mês, se bem que há o bigode e o par de pernas grossas parecidas com as do pai. Ela gosta das pernas do pai, a antena humana, o doutor em assuntos do além. Ela pode falar sobre ele, lembrar as noites passadas em claro e resgatar as legiões do mal. Mas ela o esquece e volta a concentrar-se no início do dia, nos pêlos arrepiados de seus próprios braços e no nome Aparecida. E ela sente saudades da mãe e do seu senso de realidade uterino. A mãe desapareceu.
— Pare de gritar — ele ordena.
Então ela chega em casa mais calma e dá de cara com a irmã gêmea, roendo unhas e vendo televisão. A irmã assiste a um filme de vampiros. Dentes pontiagudos, olhos vermelhos e sangue de jugulares confundem-se com a tela. Sobre o DVD, a saga dá sinais que continua, e outros títulos do gênero já esperam em fila. Um CD chama. Nas letras garrafais está escrito Possessão Parabólica: uma história para quem não teme o passado nem o futuro, uma história sobre a morte de quem segue vivo. Ela vira a caixa e olha a figura: a loira etérea. Como esse filme veio parar aqui? Quem é a atriz da foto? A irmã vem à tona e diz Hosana, cale a boca, ela morreu há séculos. E o espírito da morte entra por suas unhas vermelhas e o sangue do passado range em seus dentes O que está acontecendo? O telefone toca. Toca e insiste. Emudece e volta.
— Filha, é o pai, tive maus pressentimentos. Está tudo bem?
Então ela se cobre com o acolchoado e apaga a luz. Está em sua caixinha de veludo particular, esperando que o medo vá embora e que o dia termine. O comprimido para dormir, tomou; o banho quente, esqueceu. Se eu não a conheço, como sei o seu nome? Se está morta, como a vi? O mundo está cheio de coisas esquisitas. Dois mais dois são quatro do mesmo modo que as pessoas de uma família se parecem com as pessoas de outra e as pessoas vivas se parecem com as mortas. E os seus olhos se abrem e fecham e abrem. É a luz do quarto que se acende, é o pânico que adentra; é o pai que exclama:
—Hosana, é o chamado.
Então eles seguem na estrada, no carro espaçoso, em uma viagem por horas e meses e anos luz, e a noite e a estrada não têm fim. As vidas passando pelo retrovisor, desde a infância até o futuro. Entra o título: Possessão Parabólica. Surge a pergunta: onde está a minha mãe? No coração, os registros gritam está morta. E ela chora e repete a palavra Aparecida. Qual era o seu nome? E o pai não suspira, nem a escuta. A velocidade aumenta. O carro roda no asfalto. O horizonte cresce, e a porta lateral se abre. Hosana, nas alturas!
Muito bom!!!
ResponderExcluirtua maneira de contar histórias é incrível!Muito original e, invariavelmente, de causar arrepios e todos os sentimentos descritos.
Adorei.
WOW!!!!
ResponderExcluirQue post cinematográfico.... Digno do Scorcese!!!!
Querida Bípede, continuas profícua nos teus estudos.
Continuas sem dúvida, prodiga nos teus escritos.
Bom dia e boa semana....
Pesadelos são vida extrema.
Beijo
Marie
Obrigada, Claudinha. Essa madrugada, depois de horas de estudo, eu estava me sentindo meio sexta-feira 13 :)
ResponderExcluirMarie, sigo firme nos meus propósitos. Falta pouco, o que, é um alívio!
Que meda!
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