
Em 1999, escreveu o Amor em Família. Na época, estava grávida de uma barriga redonda. Houve um estouro, e ela desinflou, perdendo a forma e o filho que nela vivia. A criatura mergulhou em dias difíceis de silêncio e dor. Mas foi salva pelas palavras. Restaram, porém, as memórias, um pouco partidas, como as que carrega da mãe. Uma mãe artista, que lhe viu sob diversas faces e a registrou em muitos retratos, como o da guria e o cão que ao blog ilumina.
Amor em família
Estou aqui sentada há uma meia hora, e a movimentação nas minhas células ainda é intensa. Latejam as paredes que as revestem. Não sei se é meu corpo ou minha cabeça que insistem com a tempestade ou se sou eu que faço um estilo mexicano, mas o fato é que não consigo me dominar, e as lágrimas jorram como se o meu reservatório emocional fosse feito de um plástico furado ou de um útero incapaz. Não te contei que estou grávida, não é? Sim. Estou. Já são vinte e quatro as semanas que crescem em mim. Minha barriga está grande e altiva, como se fosse eu própria o trono de um rei ou uma fada madrinha. No entanto, o que eu ofereço ao meu filho é pouco, beira a miséria. Reinam ao meu redor, a desordem e a solidão. À minha mesa não sentam mais os inocentes e, quando nos reunimos, pai, irmãos e ausência, é a luz do desafeto, a vela que ilumina.
Lá pela metade da década de setenta, eu fiz seis anos. Na época, minha mãe andava esbanjando energia. O meu aniversário foi em julho, em um inverno quente de tão gelado. Ela me convidou para entrar em seu quarto – território proibido -- , me deu um beijo e uma boneca e falou parabéns. Depois, disse que eu podia sair. Obedeci. E com o pacote na mão, desci a escada negra e fui sentar em uma poltrona do gabinete do meu pai. No trajeto, não encontrei ninguém. Foi como se eu fosse única e não houvesse família. Então, fiquei lá, ancorada sobre o couro vinho, somando minhas lembranças, pensando no quanto elas já eram longas e em como eu deveria me comportar. Seis anos eram um bocado de dias.
O meu filho está se movendo. Não para de me dar sinais. Sei que ele quer me dizer algo, talvez pedir ou dar ajuda. Às vezes, nos momentos em que somos apenas nós dois e os gritos do passado não afloram das bocas de nossa família, trocamos segredos, e eu o entendo. Não que eu não saiba decodificar mensagens. Eu sei. Juntos, nós brincamos de telepatia - telepatia umbilical. Um jogo para toda a vida e que, se agora está falhando, é porque a água, com gosto de sangue, já não me sufoca, mas a inquietação insiste. Circula feito um moinho de vento, bombeando cansaço em meu coração e me mandando dormir.
Quando chegaram os anos noventa, minha mãe morreu. Em uma segunda-feira qualquer, recebi o telefonema: venha logo que ela não está bem. Fui. Vim, estancando o medo com raiva e alucinações. Ela estava mesmo mal. A pulsação era de vida, mas o câncer a vencia. Eu entrei em casa, e nós sentamos no gabinete de meu pai. Ela na cadeira de rodas; eu, outra vez, na poltrona. Minha mãe olhou para o meu rosto e para o painel de quadros na parede. Ganhei um beijo, ela entregou-me um novo retrato e disse para eu sair. Saí. Foi como se eu fosse única e não houvesse família.
Certas horas é impossível reprimir as águas que brotam dos olhos. A gente respira profundamente e elas umedecem as lentes dos instrumentos que a gente utiliza para ver de perto ou de longe. Penso demais ou de menos. Carrego dúvidas e o velho sentimento de que não posso ser tão sensível (ou sincero?).Resquício machista de uma família middle class guasca. Isso aqui é um simples comentário e não sei como assiná-lo.
ResponderExcluirLindo Bípede!!!
ResponderExcluirNão tenho mais palavras...nem coragem de escrevê-las agora, depois de ter lido...
Preciso escrever pelo menos isso: o que vc escreve é lindo pela forma como vc consegue colocar seus sentimentos, pela forma como consegue nos fazer sentir o que vc sentiu, isso é fabuloso...
ResponderExcluirolah,
ResponderExcluirvc por acaso conhece este blog-que-virou-livro? eh muito bonito e muito bem escrito...
http://www.parafrancisco.blogspot.com/
bjs
Oi, Xinho. Não conheço. Mas vou olhar. Suas dicas são sempre boas e bem-vindas. Bjs. Bípede
ResponderExcluirClaudinha, também gosto muito do que você escreve :)
ResponderExcluirMaia, fico feliz que as emoções ultrapassem a barreira dos intrumentos.
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